Certa vez, numa discussão com uma masoquista que se assume nada submissa, questionei-lhe como é que funciona isso de submeter-se à dor e não Àquele que provoca a dor? A impressão que tenho, nesses casos de masoquismo “puro”, é que os masoquistas seriam fetichistas em essência – o seu fetiche, ao invés de um sapato ou de uma peça de roupa, seria a dor -, na medida em que prescindem da relação subjetiva com o outro e instrumentalizam o seu prazer através de uma representação, um substituto, um sucedâneo daquela pessoa com quem se relacionam.
Sua resposta procurava demonstrar que a submissão é, em si, um ato masoquista e que não existe uma definição de submissão que não se enquadre dentro da definição de masoquismo. Na ocasião, instigada pela profundidade da discussão, procurei a definição para submissão dentro dos três mais conhecidos dicionários brasileiros (nenhum deles com qualquer viés BDSM):
Houaiss:
substantivo feminino
ato ou efeito de submeter(-se)
1 condição em que se é obrigado a obedecer; subordinação
Ex.: submissão às leis
2 disposição para obedecer, para aceitar uma situação de subordinação;
docilidade, obediência, subalternidade
Ex.: submissão canina
Michaelis:
submissão
sub.mis.são
sf (lat submissione) 1 Ato ou efeito de submeter ou submeter-se. 2 Disposição a
obedecer. 3 Humildade. 4 Sujeição. 5 Humilhação voluntária. 6 Obediência
espontânea.
Aurélio:
submissão
1. Ato ou efeito de submeter(-se) (a uma autoridade, a uma lei, a uma força);
obediência, sujeição, subordinação;
2. Disposição para aceitar um estado de dependência; docilidade;
3. Estado de rebaixamento servil; humildade afetada; subserviência.
Nenhuma dessas diversas definições de submissão, de acordo com os três principais dicionaristas da língua portuguesa, envolve o masoquismo – definido pelo DSM IV como “ato (real, não simulado) de ser humilhado, espancado, atado ou de outra forma submetido a sofrimento psicológico ou físico“. Abro aqui um parênteses para dizer que achei até curioso que o Michaelis, na acepção que mais se aproxima daquelas que é comumente trazida para o masoquismo (humilhação), o complemente com o termo “voluntária”, talvez exatamente para afastá-la um pouco do “sofrimento” implícito do ser humilhado.
Trouxe essas definições para enfatizar que a submissão não passa pelo masoquismo, a via é outra, completamente diversa dessa. Quando se associa a submissão à dor como se esta fizesse parte daquela, pressupõe-se que é da natureza humana o desejo de dominar, de estar no controle, de comandar e de que, ao submetermo-nos, estamos contrariando nossa natureza e nos infligindo sofrimento, pressuposto de que discordo. Não esqueçamos que nossa submissão é voluntária, relacionamo-nos nesses termos por opção. Na minha relação com meu Dono não desejo Dominar, meu prazer está exatamente em Lhe entregar o leme e entregar-me à Sua condução.
Submissas não são submetidas a sofrimento (parte inerente da definição de masoquismo), elas são submetidas Àquele que lhes domina. Sim, nesse caminho da submissão há dores, cruciantes muitas vezes, mas elas não vêm da frustração de um desejo latente de Dominar o Outro e não poder, mas do exercício extenuante de nos obrigarmos a caber no espaço que o Outro nos destina. Essa dor é “efeito colateral”, é meio através do qual, é remédio amargo, mas não é finalidade última.
Penso que essa diferença fica mais clara quando nos deliciamos em ambos os prazeres, o da submissão e o do masoquismo. Nesses casos sabemos na pele, sem necessidade de conjecturas teóricas, a diferença entre aquela dor que nos faz delirar por ser o que é – dor – e aquela que nos tira o pedaço, sangrando, para nos levar a ser cada vez mais quem somos – submissas. Acredito firmemente que a submissão e o masoquismo não só são independentes entre si, como ambas têm suas próprias e particulares vias de obter satisfação.
Ao longo da discussão, essa amiga tentou estabelecer um paralelo, na medida em que, na sua visão, “a submissa aceita e se submete à dor porque seu Dono quer e a masoquista entra no jogo da dor de maneira direta“, ou seja, ambas as vivências seriam mediadas pela dor, portanto a submissão seria apenas uma “roupa mais bonita” para vestir o chamado masoquismo psicológico.
Discordo desse entendimento. Não aceito e submeto-me à dor porque Ele quer, submeto-me a Ele. E não é sofrimento o que Ele quer de mim. O prazer que se extrai da submissão nada mais é do que o prazer de poder, enfim, despir-se das armaduras, fechar os olhos, respirar de alívio e permitir-se deslumbrar-se com a paisagem sem ter que estar no volante do carro para que ele ande. É possível e prescinde absolutamente da dor.
Quando a dor se apresenta no processo da submissão, essa dor será simplesmente um efeito colateral, algo desagradável, sem nenhum tipo de conotação erótica, algo mesmo inesperado no processo (ao contrário da dor esperada numa relação sadomasoquista). É uma dor que surpreende e que exaspera, exatamente pela sua inadequação. Minha submissão não se relaciona com o Seu sadismo, mas com Sua Dominação. Para o Seu sadismo disponho o meu masoquismo – e, sendo muitas em uma, sei que o meu gozo é variado e plural.